JOSEPH RATZINGER – BENTO XVI
JESUS DE NAZARÉ
PRÓLOGO
A INFÂNCIA DE JESUS
PREFÁCIO
O autor dá-nos conta que este não se trata do terceiro
volume, mas de uma espécie de pequeno “pórtico” dos dois volumes anteriores
sobre a figura e mensagem de Jesus de Nazaré. O livro é uma interpretação, em
diálogo com exegetas do passado e do presente, aquilo que Mateus e Lucas narram
acerca da infância de Jesus, no início dos seus Evangelhos.
CAPÍTULO I: DONDE ÉS TU? (Jo 19,9)
Trata-se da pergunta feita por Pilatos no decurso do
interrogatório. É uma pergunta sobre a origem de Jesus como questão acerca do
seu ser e da sua missão, perguntas que os 4 Evangelhos procuram responder.
Pilatos quer saber a verdade (cf. Jo 18,38), quer saber a
origem de Jesus para compreender quem era Ele e o que queria: por um lado os
acusadores pedem condenação à morte por Ele se ter apresentado como Filho de
Deus; por outro lado Ele declara ser rei mas especificando que seu reino não é
de cá (Jo 18,36) e acrescenta dizendo para quê veio ao mundo: dar testemunho da
verdade (Jo 18,37).
A pergunta sobre “donde” é Jesus, como questão de sua
origem íntima, aparece tanto em João como nos sinópticos. Por exemplo, em João
temos: “não conhecemos nós o Pai e a mãe? Como se atreve agora a dizer eu desci
do céu?” (6,42); em Lucas 4,21 Jesus diz que as palavras da Sagrada Escritura
se referiam a si mesmo e à sua missão; em Marcos: “não é Ele o carpinteiro, o
filho de Maria…” (Mc 6,3). É que eles sabem muito bem quem é Jesus e donde vem:
é um entre outros, é um como nós. A isto vem juntar-se o facto de Nazaré não
ser lugar para realização de tal promessa, assim diz Natanael: “De Nazaré pode
vir alguma coisa boa?” (Jo 1,45-46). A
vida normal de Jesus, o operário provinciano, não parece esconder qualquer
mistério; a sua proveniência revela-O como igual a todos os outros. A
origem de Jesus é simultaneamente conhecida e desconhecida: aparentemente, é
fácil de explicar e todavia sentem que a explicação não é exaustiva.
Mateus e Lucas apresentam uma genealogia. Para Mateus a
genealogia aparece como título para o Evangelho. Já Lucas a coloca no início da
vida pública de Jesus, como se fosse uma apresentação pública de Jesus. Em
Mateus há dois nomes que são determinantes para compreender donde é Jesus:
Abraão e David. É com Abraão que começa a história da promessa: Abraão é
peregrino não só saindo do país das suas origens para terra prometida, mas
também enquanto sai do presente para se encaminhar para o futuro. A Carta aos
Hebreus diz de Abraão: ele “esperava a cidade bem alicerçada…” (Hb 11,10). Para
Abraão a promessa se refere a seu descendente por meio do qual o Senhor
abençoaria todos os povos da terra (Gn 18,18), e assim na conclusão do
Evangelho o ressuscitado diz aos discípulos para fazerem discípulos de todos os
povos (Mt 28,19). David é o rei a quem foi feita a promessa dum reino eterno (2
Sm 7,16).
A genealogia de Mateus está estruturada em 3 grupos de 14
gerações. As letras hebraicas do nome de David totalizam o valor numérico de
14, o seu nome e a sua promessa caracterizam o caminho de Abraão até Jesus, o
Cristo-Rei, cujo trono está firme para sempre. Na genealogia de Mateus, antes
de Maria aparece nome de 4 mulheres (Tamar, Raab, Rute e a “mulher de Urias”,
porque? Diz-se que tais mulheres foram pecadoras, nesta ordem de ideia Jesus
teria tomado sobre Si os seus pecados; outro dado dá conta que nenhuma delas
era judia, torna-se visível que a missão de Jesus se destina a judeus e a
pagãos (gentios). Na ordem das gerações: “Abraão gerou Isaac…”, apenas se diz que
Jesus era esposo de Maria da qual nasceu Jesus que se chama Cristo (1,16),
Mateus diz-nos que José não era pai de Jesus, pois Maria concebeu por obra do
Espírito Santo (1,20). Ao aparecer o nome de Maria no fim da genealogia, mostra
que Maria é um novo início, recomeça de modo novo o ser humano.
Comparada a genealogia de Mateus, a de Lucas apresenta
várias diferenças: são poucos os nomes que concordam entre si, nem sequer no
nome do pai de José. Importa neste ponto apenas a estrutura simbólica em que
Jesus aparece colocado na história. Lucas mergulha às raízes de Jesus nas
profundezas do alto: “… Adão, filho de
Deus” (3,38), ou seja, legalmente Jesus era filho de José, mas sua origem
verdadeira é descrito nos capítulos precedentes. Lucas apresenta 76 nomes sem
qualquer articulação, aparece entretanto 11 vezes sete elementos, uma alusão
muito discreta de que chegou a plenitude dos tempos com Jesus; com Ele começa a
hora decisiva da história universal, Ele é o novo Adão. A genealogia é
expressão de uma promessa que diz respeito a toda a humanidade.
No Prólogo de João (1,1.14). encontramos de forma explícita e grandiosa a
resposta à pergunta sobre “donde” é Ele, e a partir de “donde” é Jesus, definiu
a identidade dos seus discípulos: “No princípio era o Verbo; o Verbo estava com
Deus; e o Verbo era Deus (…) e o Verbo fez-se carne e levantou a sua tenda no
meio de nós”. A carne de Jesus, a existência humana, é a tenda do Verbo; Jesus
é a tenda da reunião e o Templo. A sua origem, o seu “donde”, é o próprio princípio:
Jesus vem de Deus; Ele é Deus. E todos os que O receberam tornaram-se filhos de
deus (1,12-13): todos os crentes nasceram primeiramente do sangue e da vontade
do homem, mas a fé dá-lhes um novo nascimento: agora nascem de Deus. João resumiu o significado das genealogias
e ensinou-nos a compreendê-las também como explicação da nossa própria origem:
em Jesus nós nascemos de Deus.
CAPÍTULO II: O ANÚNCIO DO NASCIMENTO DE JOÃO BAPTISTA E
DE JESUS
- Caracterização literária dos textos
Os 4 Evangelhos apresentam a figura de João Baptista como
precursor de Jesus. Mas qual seria a fonte de Mateus e Lucas? Lucas (1-2) narra
uma história da infância de Jesus que traz a interpretação sobre a antiga
Escritura, não é uma simples ilustração das palavras antigas mas a realidade
que as palavras aguardavam (pois por se sós não eram reconhecíveis). Às vezes
Lucas alude a Maria, a Mãe de Jesus: aquela que guardava todas estas coisas em
seu coração (2,19.51). Interessa sim que Mateus e Lucas, cada um à sua maneira,
queriam não tanto narrar histórias mas escrever história, real, embora
interpretada e compreendida com base na Palavra de Deus.
- O anúncio do nascimento de João
O anúncio do nascimento de João aparece ligado ao anúncio
do nascimento de Jesus.
Zacarias, pai de João era sacerdote e de igual modo
Isabel era da ascendência sacerdotal (Cf. Lc 1,5), necessariamente João
Baptista é sacerdote, nele o sacerdócio da Antiga Aliança encaminha para Jesus.
Zacarias e Isabel eram justos diante de Deus: os justos são pessoas que vivem
as directivas da lei a partir de dentro (1,6).
O contraste do anúncio: de um lado está Zacarias,
sacerdote, o Templo, a liturgia; do outro lado, uma mulher jovem desconhecida,
Maria, uma casa particular em Nazaré (casa humilde e lugar desconhecido nas
Sagradas Escrituras). O sinal da Nova Aliança é a humildade, a vida escondida:
o sinal do grão de mostarda.
O anúncio do nascimento de João obedece a textos
veterotestamentários: por um lado as
histórias semelhantes aos da promessa de um filho gerado de pais estéreis
(Abraão – Gn 18,10-14; Ana, mãe de Samuel – 1 Sm 1) para dizer que João
situa-se na esteira daqueles que nascera, de pais estéreis graças a intervenção
prodigiosa daquele Deus para quem nada é impossível. Quando se diz que João não
beberá vinho nem bebida alcoólica (Lc 1,15), mostra que ele se insere na
tradição sacerdotal (Lv 10,9), mais tarde ele anunciará o novo sacerdócio que
aparecerá com Jesus; por outro lado
alguns textos proféticos dos livros de Malaquias (3,23-24) e Daniel (9,21s): a
partir de Malaquias, a missão de João é interpretada com base na figura de
Elias, aquele que teria a missão de preparar o povo para a chegada do Senhor
(João é inserido na categoria de profetas); a partir de Daniel, a hora do
anúncio, é a hora da revelação, da instauração da justiça eterna que entra no
tempo, assim se percebe o “cumpriu-se o tempo”.
- A anunciação a Maria
O anjo ao aparecer a Maria não usa a habitual saudação
judaica, shalom – a paz contigo, mas
a fórmula grega khaire – Avé ou
Alegra-te. O que significa: abre-se imediatamente também a porta para os povos
do mundo; mas também soa a palavra da promessa da profecia de Sofonias
(3,14-17): quer Sião quer Maria devem alegrar-se porque o Senhor está no meio
deles (no seio deles), em alusão a Ex 33,3; 34,9 onde a habitação de Deus na
Arca da Aliança é tida como um habitar de Deus no seio de Israel.
Maria procura saber do anjo “como” se dará a concepção e
dentre as promessas, encontramos “O Espírito Santo virá sobre ti e a força do
Altíssimo estenderá sobre ti a sua sombra…” (Lc 1,35): a nuvem sagrada (shekinà) é sinal visível da presença de
Deus; a nuvem estende sua sombra sobre os homens; sobre a sombra que desce com
o Espírito Santo é retomada a teologia relativa a Sião, mais uma vez Maria
aparece como a tenda viva de Deus, na qual ele quer habitar, no meio dos
homens.
O anjo anuncia o nome do menino que vai nascer: Jesus. No
nome de Jesus esconde-se o tetragrama YHWH, o misterioso nome de Deus que agora
é ampliado para Deus salva. A revelação do nome de Deus que começou na
sarça-ardente é completada em Jesus (cf. Jo 17,26). Este anúncio é efectuado
numa altura em que já não era um herdeiro de David a governar, é como se Deus
tivesse se esquecido da sua promessa; o anjo anuncia que Deus não esqueceu a
sua promessa, no menino que Maria conceberá, ela se tornará realidade: o seu
reino não terá fim, diz Gabriel a Maria. O reino do Filho de David, Jesus,
estende-se de mar a mar, de continente a continente, dum século ao outro. Ora,
seu reino não é de cá (Jo 18,4), não está construído sobre um poder mundano,
mas funda-se apenas na fé e no amor; é a grande força de esperança num mundo
que parece estar abandonado por Deus.
Quanto a reacção: Maria, primeiro diferentemente de
Zacarias, não ficou perturbada e cheio de temor (Lc 1,12) mas reflectiu (entrou
em diálogo consigo mesma); ela torna-se imagem da Igreja que reflecte a Palavra
de Deus, procura compreendê-la e guarda o dom da mesma na sua memória. Em
segundo lugar, Maria formula a enigmática questão: como será isso?: Maria não
vê modo algum de se tornar mãe de Messias pela via conjugal e só então o anjo
confirma-lhe que não será mãe pelo modo normal depois de ser recebida em casa
de José, mas através da sombra da força do Altíssimo, pela vinda do Espírito Santo,
pois a Deus nada é impossível (Lc 1,37). Finalmente temos a terceira reacção, a
resposta. Bernardo afirma que no momento do pedido a Maria, o céu e a terra
como que suspendem a respiração. Dirá “sim”? E é neste momento que do seu
coração surge a resposta: “faça-se em mim segundo a tua palavra”. Então o anjo
se retirou… Maria fica sozinha, ela deve prosseguir pelo seu caminho que
passará através de muitas obscuridades até a hora da cruz. Quantas vezes, em
tais situações, Maria não terá voltado interiormente à hora do anúncio e
recordado o “alegra-te”, “não temas”.
- Concepção e nascimento de Jesus, segundo Mateus
Maria, pelo noivado, já podia ser chamada esposa de José.
Ora muitas ideias apareceram em sua cabeça, inclusive a de abandoná-la em
segredo. José é tido como homem justo (zaddik)
não por tal decisão mas porque o era, e assim é inserido entre as grandes
figuras bíblicas, a começar por Abraão, o justo. O Sl 1 apresenta a imagem
clássica do justo: o carácter pessoal da justiça é a confiança em Deus; trata-se
de um homem que tem suas raízes nas águas vivas da Palavra de Deus; José
procura aplicar a lei de maneira justa, fá-lo com amor; procura a unidade entre
o direito e o amor. O anjo aparece a José em sonho, mas um sonho que revela
realidade; só uma pessoa atenta ao divino pode receber a mensagem desta forma;
esta mensagem requer dele a fé. José é interpelado como filho de David, o que
quer dizer que enquanto portador da promessa feita a David, ele deve fazer-se
garante da fidelidade de Deus. E anjo diz: “não temas” aceitar esta tarefa, que
pode suscitar temor. A seguir é confiado a José a missão de dar o nome, José
deve assumi-lo como seu filho; o nome é Jesus (Jeshua) que significa Jahvé é
salvação; e esclarece em que consiste esta salvação: Ele salvará o povo dos
seus pecados. É que a expectativa comum da salvação estava orientada para a
restauração do reino davídico; do bem-estar material, de tal modo que a
promessa do perdão dos pecados parece não ter em consideração o sofrimento
concreto de Israel; muitos dos que se sentiam oprimidos não era tanto pelos
pecados mas por falta de liberdade e pela existência miserável. Mas a verdade
demonstra a prioridade do perdão dos
pecados como fundamento de toda a verdadeira cura do homem. Jesus quer
chamar atenção ao homem para o cerne do seu mal, fazendo-lhe ver: se não
estiver curado nisto então apesar de todas as coisas boas que possas encontrar,
verdadeiramente não estás curado. A conclusão da narrativa é que José se
levantou do sono e fez o que lhe fora mandado pelo anjo do Senhor, mais uma vez
demonstra ser justo seguindo a ordem de Deus.
Quanto ao cumprimento da profecia ( Mt 1,22-23; cf. Is
7,14): surgiram muitas interpretações, a verdade é que o vaticínio do profeta,
segundo Raiser, é como um buraco de fechadura miraculosamente preparado, no
qual a chave, Cristo, entra perfeitamente. A profecia de Emmanuel cumprida em
Jesus é um sinal que diz respeito ao mundo inteiro e não tanto ao contexto do
rei Acaz.
- O parto virginal: mito ou verdade histórica?
Será que se trata de uma lenda piedosa que procura
interpretar ou exprimir o mistério de Jesus? Alguns estudiosos admitiram que a
narração do nascimento virginal de Jesus deriva das narrativas sobre a geração
e o nascimento dos faraós egípcios; contudo tal hipótese tem a ver com uma
teologia política que quer colocar o rei na esfera do divino e assim legitimar
a sua pretensão divina. Outros textos de influência greco-romano que vê no
nascimento de Jesus por obra do Espírito Santo como a união entre Zeus e
Alcmena, da qual nasceu Hércules ou a união entre Zeus e Danae, da qual nasceu
Perseu, etc. Contudo é preciso entender que Jesus não é nenhum semideus. Jesus
nascido de Maria é plenamente homem e plenamente Deus. As narrações de Mateus e
Lucas não são formas desenvolvidas de mitos; mas uma tradição transmitida que
conserva o sucedido. Quem lê as narrativas bíblicas e as compara com as
tradições semelhantes de que antes se falou brevemente vê imediatamente a
diferença profunda. Não existe nada de contactos físicos entre Deus e os
homens. É a obediência de Maria que abre a porta a Deus, que com sua Palavra,
seu Espírito, cria nela o Menino. A Deus é concedido agir sobre as ideias e os
pensamentos na esfera espiritual, mas não sobre a matéria, isto para o mundo
moderno, mas Deus também tem poder sobre a matéria se não, não seria Deus. Com
sua concepção e ressurreição Cristo inaugurou uma nova criação; e estes dois
factos são elementos fundamentais da nossa fé e um luminoso sinal de esperança.
CAPÍTULO III: O NASCIMENTO DE JESUS EM BELÉM
- Quadro histórico da narração do nascimento no Evangelho de Lucas
“Por aqueles dias, saiu um édito da parte de César
Augusto para ser recenseada toda a terra” (Lc 2,1): com estas palavras Lucas
explica o porque de Jesus ter nascido em Belém. O nascimentode Jesus na cidade
de David, lugar da promessa, situa-se no quadro da grande história universal.
Porque ligar Jesus a Augusto? Augusto era a figura política do momento, na
inscrição de Priene (ano 9 a.C.) ele é chamado salvador, um título reservado a
Zeus, Epicuro e Esculápio, e na tradução grega do A.T este título era reservado
exclusivamente para Deus. Augusto era tido também como aquele que trouxe a paz.
Um problema fácil de esclarecer: o recenseamento teve
lugar no tempo do rei Herodes, o Grande, que porém morreu no ano 4 a.C. Ora
sabe-se a contagem dos anos feita pelo monge Dionísio teve erro. A ser assim
temos de fixar a data do nascimento de Jesus alguns anos antes: para Josefo o
recenseament deu-se no ano 6 d.C. na altura que Quirino era governador, contudo
ele já actuava por volta do ano 9 a.C na Síria, e que na opinião de Alois
Stoger, leva a crer que o recenseamento se desenrolava lentamente,
estendendo-se por alguns anos. Contudo, acerca dos detalhes, poder-se-á sempre
discutir. Permanece difícil lançar um olhar sobre a vida diária de um organismo
distante de nós e tão complexo como foi o Império Romano. Mas os conteúdos de Lucas permanecem, apesar de
tudo, historicamente credíveis, já que ele resolveu expô-los, como diz no
prólogo do seu Evangelho, depois de tudo ter investigado cuidadosamente (Lc
1,3). Fê-lo com meios à sua disposição; ele estava mais perto das fontes e dos
acontecimentos do que nós, apesar de toda a erudição histórica. Até porque a
propósito do nascimento de Jesus, não temos outras fontes além das narrativas
da infância de Mateus e Lucas. Fica claro, portanto, que Jesus nasceu em Belém
e cresceu em Nazaré.
- O nascimento de Jesus
“E, quando eles ali (em
Belém) se encontravam, completaram-se os dias de ela dar à luz e
teve o seu filho primogénito, que envolveu em panos e recostou numa manjedoura,
por não haver lugar para eles na hospedaria” (Lc 2,6-7).
Não havia lugar… para Aquele para quem todas as coisas
foram criadas (cf. Cl 1,16). Faz parte do tornar-se cristão este sair do âmbito daquilo que todos pensam e
querem, sair dos critérios predominantes para entrar na luz da verdade.
Maria colocou o Menino recém-nascido numa manjedoura (cf.
Lc 2,7). O menino rigidamente envolvido nos panos aparece como uma alusão
antecipada à hora da sua morte (em que é
envolvido em panos…). A manjedoura é o lugar onde os animais encontram o
seu alimento. Agora, porém, jaz na manjedoura Aquele que havia de apresentar-se
a si mesmo como o verdadeiro pão descido
dos céus, como verdadeiro alimento que o homem necessita para ser pessoa
humana. Aqueles dois animais (boi e burro) podem ser vistos como os dois
querubins que, segundo Ex 25,18-20, estavam colocados sobre a cobertura da Arca
da Aliança, para indicar e esconder a presença misteriosa de Deus, escondem a
Arca da Aliança; estes dois animais representam também a humanidade desprovida
de compreensão (compreender que aquele menino era Deus).
Maria teve o seu filho primogénito… a teologia Paulina
nos ajuda a ver o termo primogénito sob ponto de vista da salvação: Jesus não é
só primeiro em ordem de dignidade, mas é Aquele que inaugura uma nova
humanidade (cf. Rm 8,29); Ele é a primeira ideia de Deus e antecede toda a
criatura, que está ordenada para Ele e a partir d’Ele (cf. Col 1,15.18).
Os anjos apareceram aos pastores… as primeiras
testemunhas do grande acontecimento são os pastores que aí estão de vigia.
Jesus nasceu fora da cidade, num ambiente de pastagens para onde levavam os
seus rebanhos, eles portanto, estavam mais perto do acontecimento por um lado,
e por outro lado eles estavam intimamente próximos de Deus, eles eram os pobres
de Israel, às almas simples, os pobres em geral, destinatários privilegiados do
amor de Deus (cf. Lc 10,21-22). Também a uma alusão à unção de David: quando Samuel
foi enviado à casa do pai de David, todos irmãos de David que estavam na casa
não foram escolhidos por Deus, somente David que estava fora, a apascentar o
rebanho (Cf. 1 Sm 16,1-13). Em última análise Jesus nasceu entre os pastores
porque Ele é o grande Pastor dos homens (cf. 1 Pd 2,25; Hb 13,20; Mq 5,1-3)
Sobre o anúncio aos pastores feito pelos anjos: “Glória a
Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade”: da primeira parte
entende-se que a glória de Deus não é algo que os homens podem produzir
(contudo a nós cabe nos empenhar para que a glória de Deus não seja desonrada
nem deturpada); da segunda parte, existem várias traduções, entre elas: “homens
da sua graça” (há pessoas que não gozam do favor de Deus?); “homens por Ele
amados” (existe algum homem que Deus não ame?). A tradução literal aponta para
“homens do (seu) agrado (quais então são estes homens?). Em primeiro lugar é o
próprio Cristo (Lc 3,22) e as pessoas do agrado de Deus são aquelas que têm o
comportamento do Filho, pessoas configuradas com Cristo (a graça de Deus sempre
nos precede, sustenta e alimenta). Lucas nos diz aqui que aquilo que o
imperador Augusto pretendeu para si se realiza de modo mais sublime no menino:
a paz de Cristo supera a paz de Augusto. A paz de Jesus é uma paz que o mundo
não pode dar (cf. Jo 14,27).
Os pastores foram apressadamente… movidos talvez pela
curiosidade humana, mas também sentiam-se cheios de ardor devido à alegria
devido as coisas de Deus: o nascimento do verdadeiro salvador. E quantos cristãos
se apressam hoje quando se trata das coisas de Deus?
- A apresentação de Jesus no Templo
Lucas fala do 8º e 40º dia: no 8º dia Jesus é
circuncidado e no 40º acontece 3 coisas: a purificação de Maria, o resgate do
filho primogénito através do sacrifico prescrito na Lei e a apresentação de
Jesus no Templo. Maria ofereceu o sacrifício dos pobres (Lc 2,24), nos leva a
pensar que Jesus se contava entre os pobres de Israel. Maria não precisou ser
purificada porque esse nascimento trouxe a purificação do mundo, mas ela
obedece à Lei. O menino não foi resgatado nem voltou à propriedade dos pais,
mas foi entregue ao Templo pessoalmente a Deus, totalmente dado a Ele em
propriedade. Os profetas Simeão e Ana aparecem como representantes de Israel
crente. As palavras com que Simeão louva Deus “os meus olhos virão a (tua)
salvação…”, soam “salvador”; depois disso ele se dirige a Maria e anuncia-lhe
uma espécie de profecia da cruz (cf. Lc 2,34-35). A propósito do menino Simeão
diz que ele será ocasião de queda e ressurgimento em alusão a Is 8,14 em que
Deus é indicado como pedra em que se tropeça e cai: Deus com sua verdade
opõe-se a múltipla mentira do homem, ao seu egoísmo e a sua soberba. Ana era
uma viúva piedosa, de corpo e alma vivia junto de Deus e para Deus; a sua profecia
consiste no anúncio, na transmissão da esperança de que vive.
CAPÍTULO IV: OS MAGOS DO ORIENTE E A FUGA PARA O EGIPTO
- Quadro histórico e geográfico da narração
“Tendo Jesus nascido em Belém da Judeia, no tempo do rei
Herodes, chegaram a Jerusalém uns magos (astrólogos) vindos do Oriente. E
perguntaram: Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? Vimos a sua
estrela no Oriente e viemos adorá-lo” (Mt 2,1-2).
Os paralelismos de Augusto voltam a aparecer em Herodes:
ele que reina graças a protecção do governador e faz isso com pretensão
messiânica. A profecia de Balaão, um vidente pagão, que encontramos em Nm
24,17: “Eu vejo, mas não para já; contemplo-o,
mas ainda não próximo: uma estrela surge de Jacob e um ceptro se ergue de
Israel”, poderia estar a circular fora do judaísmo e poderia ser objecto
de reflexão para as pessoas num caminho de busca.
- Quem eram os magos?
Eram membros de uma casta sacerdotal persa (dirigentes de
uma religião, com ideias religiosas fortemente influenciadas pelo pensamento
filosófico); detentores e profissionais de um saber e de um poder sobrenaturais
(feiticeiro, sedutor). Os magos que Mt 2 apresenta embora não pertencessem
exactamente a classe sacerdotal persa, eram portadores de um conhecimento
religioso e filosófico que se desenvolvera e se achava ainda presente naqueles
ambientes. Mas que género de homens eles eram? Provavelmente não eram apenas astrónomos,
mas homens de uma certa inquietação interior, homens de esperança, à procura da
verdadeira Estrela da salvação; eles eram sábios que iam pata além de si mesmo
a busca de Deus. Eles representam o
caminho das religiões para Cristo, bem como a auto-superação da ciência rumo a
Ele: o movimento das religiões e da razão humana ao encontro de Cristo.
Eles representam o encaminhamento da humanidade para Cristo, inauguram uma
procissão que percorre a história inteira.
- A estrela
Várias são as teorias sobre a estrela de Belém, sendo que
uma apontam para a estrela como um fenómeno astronómico e outros (como é o caso
de Crisóstomo) diz que não se tratava duma estrela comum, mas um poder
invisível que adoptara tal fisionomia. Ora, a grande conjunção de Júpiter e
Saturno (o fenómeno da estrela muito brilhante) no signo zodiacal de Peixes nos
anos 7-6 a.C (ano provável do nascimento
de Cristo) parece ser um facto confirmado.
A linguagem da
criação suscita no homem a intuição do Criador, suscita a esperança de que
um dia esse Deus se manifestará e suscita a consciência que o homem deverá ir
ao encontro d’Ele. Na verdade a estrela conduziu os magos até a Judeia mas só
pelas Sagradas Escrituras de Israel (Mt 2,6; Mq 5,1; 2 Sm 5,2) é que eles
encontraram a estrada para o verdadeiro herdeiro de David. Um dos Padres
(Gregório Nazianzeno) diz que no momento em que os magos se prostraram diante
de Jesus, terá chegado o fim da astrologia. Nesta ordem de ideia percebe-se que
não é a estrela que determina o destino do menino, mas o menino que guia a
estrela.
- Paragem intermédia em Jerusalém
Os magos procuram pelo “rei dos judeus”, uma linguagem
não judaica porque o comum era “rei de Israel”; “rei dos judeus” volta a
aparecer no processo de Jesus e na inscrição da Cruz, usada em ambos casos por
um pagão, Pilatos (cf. Mc 15,9; Jo 19,19-22), o que significa que no momento em
que os primeiros pagãos perguntam por Jesus já transparece o mistério da cruz,
indivisivelmente ligado à realeza de Jesus. Ouvido isso Herodes e toda
Jerusalém ficaram perturbados, pois aquilo
que na grande perspectiva da fé é uma estrela de esperança, na perspectiva da
vida quotidiana constitui, inicialmente, apenas causa de transtorno, motivo de
preocupação e temor. É que Deus perturba a nossa comodidade diária.
- A adoração dos magos diante de Jesus
A estrela que os magos seguiam desapareceu em Jerusalém,
só depois do encontro dos magos com a Palavra da Escritura, a estrela
resplandece de novo para eles. A criação,
interpretada pela Escritura, volta a falar ao homem. Ao ver a estrela sentiram
fortemente uma grandíssima alegria (Mt 2,10). É a alegria do homem que é
atingido no coração pela luz de Deus e pode ver realizada a sua esperança: a
alegria daquele que encontrou e foi encontrado. Os magos prostram-se diante
d’Ele; esta é a homenagem que se presta a um Rei-Deus; e oferecem presentes: em
Is 60,6 o ouro e incenso são presentes que hão-de ser oferecidos pelos povos ao
Deus de Israel. O ouro mostra a realeza, o incenso aponta para sua filiação
divina, e a mirra para o mistério da sua Paixão (em Jo 19,39 diz-se que
Nicodemos trouxe mirra para ungir o corpo de Jesus), assim o mistério da cruz
ligado a realeza prenuncia-se já na adoração pagã.
- A fuga para o Egipto e o regresso à Terra Santa
Em sonhos José é informado pelo anjo para fugir para o
Egipto com o menino e mãe, pois Herodes procurará o menino para o matar (Mt
2,13). Estava em jogo o reinado de Herodes, ele sentia-se ameaçado, estava
disposto a matar quem fosse uma ameaça (Jesus), como os magos não voltaram, ele
decidiu matar os meninos recém-nascidos da idade de dois anos para baixo.
Alguns exegetas questionam a realidade histórica do acontecimento. Alguns dizem
que tal narrativa teve influência de uma literatura daquele tempo aplicada a
Moisés, que podemos encontrar no hagadá de
Moisés transmitida por Flávio Josefo: segundo o livro de Êxodo, faraó estava
preocupado com o aumento da população israelitas, via nisso uma ameaça para seu
país, por isso mandou matar os filhos recém-nascidos de sexo masculino, e
Moisés acaba escapando, e é criado na corte como filho adoptivo da filha do
faraó; mais tarde devido ao compromisso a favor da população judaica
atribulada, tem de fugir (cf. Ex 2). No hagadá
de Moisés conta de outra maneira: o faraó ouviu que nasceria da raça
judaica um menino que uma vez adulto destruiria o domínio dos egípcios e tornar
os israelitas poderosos. Em resultado disso o rei ordenou que fossem mortos
todos meninos judeus logo depois do nascimento, lançando-os ao rio. Mas Deus
apareceu ao pai de Moisés e prometeu salvar o menino. Esta história faz com se
pense na narrativa de Mateus como uma variação cristã da hagadá de Moisés, mas sabe-se que existem grandes diferenças e por
outro lado o livro de Flávio é posterior ao Evangelho de Mateus. Entretanto
Mateus retomou a história de Moisés como os olhos postos em Os 11,1: “do Egipto
chamei o meu filho”. Filho antes aplicado a Israel e agora aplicado a Jesus.
Ora o primeiro chamamento para regressar do país da escravidão tinha falhado
sob muitos aspectos: “quanto mais os chamei, mais se afastaram” (Os 11,2); este
afastamento conduz o povo a uma nova escravidão: “ele voltará ao Egipto, e a
Assíria será seu rei, porque recusaram converter-se” (Os 11,5). Por assim dizer
Israel continuava a estar no Egipto. Para o Evangelista a história de Israel
recomeça de modo novo com o regresso de Jesus do Egipto à Terra Santa: Jesus opera
o êxodo definitivo, Ele não sai de casa para se afastar do Pai, Ele volta a
casa e conduz a casa; Ele, o verdadeiro Filho, saiu para o “exílio” a fim de
nos trazer a todos da alienação para casa. Finalmente a consolação pelos
meninos mortos, não são simples palavras de consolação, mas a ressurreição.
Mais uma vez José avisado em sonho, toma o menino e a mãe de volta, mas desta
vez não em Belém, pois ouvem que Arquelau rei mais cruel dos filhos de Herodes,
reinava na Judeia; ele deverão ir fixar-se na Galileia. É o anjo que os manda
para a Galileia para mostrar que a proveniência de Jesus da Galileia concorda
com a orientação divina da história. Jesus vai morar em Nazaré, de tal modo que
entre os hebreus os seguidores de Jesus eram chamados nazoreus. Na palavra
nazoreu, ressoa a palavra nezer patente
em Is 11,1: “brotará um rebento (nezer) do tronco de Jessé (pai de David)”, dai
o cumprimento da profecia segundo a qual do tronco de Jessé saira um novo
rebento sobre o qual repousaria o Espírito de Deus. Assim na cruz “Nazoreu” não
só designa a proveniência de Jesus mas também a sua identidade profunda (Ele é
o rebento consagrado a Deus).
E qual deve ser nossa atitude? Para Klaus Berger “mesmo
no caso de um único testemunho…, é preciso supor, até prova em contrário, que
os evangelistas não têm a intenção de enganar os seus leitores, mas querem
contar factos históricos (…) contestar por mera suspeita a historicidade desta
narrativa ultrapassa toda a competência imaginável de historiadores que se
possa imaginar.
EPÍLOGO: JESUS AOS 12 ANOS NO TEMPLO
O facto de Maria e Jesus (juntamente com José) terem
participado na peregrinação (a Jerusalém) prova uma vez mais a religiosidade da
família de Jesus. Foi a 1ª Páscoa de Jesus em Jerusalém, apesar de ser
obrigatória a partir dos 13 anos, ao faze-lo aos tinha em vista a aquisição do
hábito pouco a pouco. Contudo de regresso Maria e José, já no final do dia
dão-se conta da sua ausência. De facto o adolescente de 12 anos era deixado
livre para decidir juntar-se aos coetâneos e amigos e ficar na sua companhia ao
longo do caminho, mas à noite, esperavam-no os pais. O facto de Jesus não se
apresentar não tem nada a ver com a liberdade dos jovens, remetendo antes, como
se verá, a outro nível: a missão particular do Filho.
Os três dias que levaram a procurá-lo podem ser visto
como uma alusão velada aos três dias entre a cruz e a ressurreição. São dias de
sofrimento por causa da ausência de Jesus, dias de uma escuridão cuja gravidade
se sente nas palavras da mãe (Lc 2,48). A resposta que Jesus dá é simplesmente:
estou precisamente onde é meu lugar, com o Pai, na sua casa. Torna-se claro que
aquilo que parecia como desobediência ou liberdade inconveniente com os pais,
na realidade, é precisamente expressão da sua obediência filial: Ele está no
Templo não como desobediência mas como aquele que obedece. Maria não entende
mas guarda a resposta de Jesus no seu coração, ele tem que amadurecer a sua fé:
as palavras de Jesus nunca cessam de ser maiores do que a nossa razão, superam
sempre de novo a nossa inteligência; é uma tentação compreensível reduzi-las e
manipular para fazê-las entrar na nossa medida, contudo uma recta exegese é
feita na humildade que respeita esta grandeza.
Crescer em graça ressoa a infância de Samuel que também
crescia em graça diante de Deus e dos homens; o evangelista recorre a uma
correlação entre a história da infância de Jesus e Samuel, correlação que
apareceu pela primeira vez no Magnificat, o cântico de louvor de Maria por
ocasião do encontro com Isabel, um hino que é uma nova versão da oração de
gratidão de Ana, mãe de Samuel.
Esta narração sobre Jesus aos 12 anos abre a porta para o
conjunto da sua figura que depois nos é narrada pelos Evangelhos.