INTRODUÇÃO
As dissertações concernentes ao Projecto Genoma Humano,
que é o tema que abordaremos nas páginas que seguem, mostram em si uma dupla
face. Em primeiro lugar encontramos a face dos que se mostram afáveis; e em
segundo lugar aqueles que são avessos de forma intransigente ao PGH. Por outro
lado, as novas tecnologias biomédicas introduzidas para avaliar o DNA provocam
ulteriores interrogações, em particular no impacto social que pode criar.
Como se sabe, o avanço tecnológico alcançou patamares exímios.
Porém, este desenvolvimento não é acompanhado com igual valoração da dignidade
humana. De lembrar que o reconhecimento deste princípio “deve ser colocado no
centro da reflexão ética sobre a investigação biomédica, que tem uma
importância cada vez maior no mundo de hoje”[1].
Depois de apresentaremos a definição do Genoma humano, na
primeira parte, seguiremos a falar da origem, objectivos e importância do
Projecto Genoma Humano; vantagens e desvantagens, aspectos éticos do PGH e suas
consequências para culminar na voz do Magistério da Igreja e a apreciação do
grupo que vai cerrar a nossa abordagem.
1.
Definição do Genoma
O genoma humano conhece uma variedade
de definições. A seguir apresentamos as principais que a ciência biomédica nos
apresenta entre as várias que existem.
O genoma humano é um “conjunto de
informações necessárias para a formação de um ser humano. Essas informações
estão no DNA distribuídas em 23 pares de cromossomas, que carregam os genes,
compostos por quatro elementos básicos: Adenina, Timina, Citosina, Guanina”[2].
Portanto, o genoma é o conjunto haplóide de cromossomas de uma espécie. Ou
seja, a junção de todo material genético de um ser vivo.
Deste modo, o Projecto Genoma Humano é traduzido como um esforço de pesquisa internacional
para sequenciar e mapear todos os genes dos seres humanos, que no seu conjunto
é conhecido como genoma. O projeto tem como finalidade
decifrar todos os genes da espécie humana, porém os genes que estão isolados, a
ciência faz com que voltem para os seus lugares e formem uma proteína. Este projecto inicialmente nasceu com a ideia de
identificar as possíveis anomalias genéticas relacionadas à radiação e agentes
químicos mutagénicos.
2.
Origem do Projecto Genoma Humano
As primeiras discussões sobre o Projecto Genoma
Humano (PGH) “remontam à década de 1980 quando o Departamento de Energia dos
EUA promoveu um workshop para avaliar
os métodos disponíveis para detecção de mutações durante o qual divulgou a ideia
de mapear o genoma humano”[3]. É
neste período que criou-se na França, o Centre
d’Etude du Polymorsphisme Humaine (CEPH - Centro de Estudos do Polimorfismo
Humano), para colectar amostras de sangue e tecidos de famílias extensas e,
tornou-se o principal fornecedor de material para a elaboração dos mapas de
ligação realizados pelo Généthon.
A ideia de mapear o genoma levantou desde o
princípio uma série de controvérsias. Para muitos pesquisadores da época era um
projecto irrealizável. Para outros não havia sentido em mapear o genoma pois as
informações obtidas seriam desencontradas e não valeriam o esforço. Por outro
lado, alguns pesquisadores viram naquela oportunidade a chance de transformar a
biologia (e mais especificamente a genética) em “big science”, com direito a financiamentos gigantescos e divulgação
ampla.
O projecto foi lançado nos EUA quatro anos
depois, patrocinado pelo NIH (National
Institute of Health) e pelo DOE (Department
of Energy). Em seguida uniram-se ao projecto laboratórios da Europa, do
Japão e da Austrália. Surgiu então um organismo de coordenação internacional
chamado HUGO (Human Genome Organization),
para sintonizar o trabalho e organizar o conhecimento adquirido num banco de
dados centralizado, o Genome Database.
O presidente do HUGO, H. Van Ommen, afirmou em 1998 que a missão do HUGO era “facilitar
e coordenar a iniciativa global de mapear, sequenciar e analisar funcionalmente
o genoma humano e promover a aplicação destes conhecimentos ao melhoramento da
saúde humana”[4].
Hoje este projecto está sendo desenvolvido por grandes
laboratórios e Institutos Nacionais de Pesquisa, dos EUA e da Europa, bem como,
por centenas de laboratórios governamentais e particulares de várias partes do mundo,
dedicados a mapear e sequenciar o genoma humano.
Numa primeira fase do Projecto, com a liderança de James Watson, foi feito
o mapeamento físico dos genes, ou seja, a localização no cromossoma de
determinadas sequências do DNA, correspondentes a cada gene do genoma. Numa
segunda fase cada laboratório ou instituto de pesquisa recebeu um cromossoma e
ficou incumbido de determinar a sequência ordenada e completa dos nucleotídeos
que compõem aquele cromossoma, o que inclui genes e regiões controladoras da
expressão destes. Basicamente,
18 países iniciaram programas de pesquisas sobre o genoma humano. Os maiores
programas desenvolvem-se na Alemanha, Austrália, Brasil, Canadá, China, Coreia,
Dinamarca, Estados Unidos, França, Holanda, Israel, Itália, Japão, México,
Reino Unido, Rússia, Suécia e União Europeia.
A questão das
patentes foi levantada pela primeira vez pelos americanos, em 1988, quando o
PGH não existia oficialmente. Como nos confirma Pessini, “o protagonista da
história foi um rato de um laboratório dos Estados Unidos designado por Mec Mice, que entrou para a história da
genética por ter sido o primeiro animal oficialmente reconhecido como uma
invenção do homem”[5]. Seus
criadores foram os biólogos americanos da Hanarde Medical School, em Boston,
que inocularam na cobaia um oncogene (gene do câncer) humano capaz de
desencadear o câncer de mama. Geneticamente, ele não era mais o mesmo após a
experiência. Era um animal produzido em laboratório. Este invento vulgarizou-se
quando a equipa do geneticista Garig Venter, do Instituto Nacional de Saúde de
Maryland (EUA) isolou em 1990, de uma só vez 337 genes. A conquista foi
festejada nos principais laboratórios do mundo. Pouco tempo depois, o Instituto
de Maryland requereu patentes para todos os genes descobertos.
3.
Objectivos e importância do Projecto
3.1. Objectivos
O Projecto Genoma Humano (PGH) é um
empreendimento internacional, projectado, no começo, para uma duração de quinze
anos. O mesmo teve início em 1990 com vários objectivos, entre eles podemos
mencionar:
ü
Identificar e fazer o mapeamento dos
cerca de 80 mil genes que se calculava existirem no DNA das células do corpo humano;
ü
Determinar as sequências dos 3 bilhões
de bases químicas que compõem o DNA humano, armazenar essa informação em bancos
de dados e, desenvolver ferramentas eficientes para analisar esses dados e
torná-los acessíveis para novas pesquisas biológicas;
ü
Descobrir todos os genes na sequência
de DNA e desenvolver meios de usar esta informação no estudo da Biologia e da
Medicina, envolvendo com isso a melhoria e simplificação dos
métodos de diagnósticos de doenças genéticas, optimização das terapêuticas para
essas doenças e prevenção de doenças multifatoriais (doenças causadas por
vários fatores), no que diz respeito à saúde;
ü
Construir uma série de diagramas
descritivos de cada cromossoma humano, com resolução cada vez mais apurada. Com
efeito é necessário: dividir os cromossomas em fragmentos menores que possam ser
propagados e caracterizados; e depois ordená-los de forma a corresponderem a
suas respectivas posições nos cromossomas. A informação advinda do projecto
deve servir para proteger e melhorar a saúde - curar ou prevenir doenças; determinar a ordem, ou sequência, de todas as bases do
nosso DNA genómico;
ü
Descobrir como essas substâncias
químicas estão organizadas na longa fita retorcida do DNA;
Segundo Jordan, o verdadeiro objectivo inicial do
PGH não era o sequenciamento, muito complexo, caro e trabalhoso, mas um
mapeamento detalhado do genoma humano. No decorrer do processo os progressos
tecnológicos foram tão grandes que propiciaram o sequenciamento mesmo antes do
prazo previsto[6].
De qualquer forma, mapeamento e não sequenciamento foi a estratégia francesa.
Os alemães foram sempre os mais reticentes quanto ao projecto.
3.2.
Importância
A grande
importância do PGH é sua busca pelo melhoramento humano e a tentativa de
tratar, prevenir ou até mesmo curar doenças genéticas considerando-as todas de
origem genética, e divulgando que um dia encontremos uma “solução genética”
para estas condições de saúde. Porém, auguramos que essas medidas não cedam a
exageros que levem à condenação social do ser humano e possa facilitar na melhoria
da condição de saúde dos pacientes.
4.
Vantagens e desvantagens
4.1.
Vantagens
O PGH tem o potencial de criar enormes benefícios à
humanidade por meio de “prevenção e cura de doenças, compreensão de nossa
evolução e origens e muitas outras aplicações, entendendo-se que o conhecimento
obtido deve ser uma propriedade valiosa de toda humanidade”[7]
sem esquecer que outras vantagens nos poderão surpreender.
As vantagens desse trabalho estão no facto da
identificação da cura e da causa de muitas doenças como a obesidade, o diabetes
e a hipertensão, o que será de grande benefício para a humanidade. Portanto, existem múltiplas vantagens no uso dos conhecimentos
adquiridos sobre o Genoma Humano, pois se poderia detectar se uma pessoa está
predisposta a sofrer de cancro, por exemplo, e assim, o tratamento seria mais
eficaz. Podemos acrescentar que o conhecimento do Genoma Humano possibilitaria
encontrar enfermidades graves num embrião e corrigi-los. Todas estas vantagens
traduzem-se no aumento da esperança média de vida. As informações detalhadas
sobre o DNA e o mapeamento genético dos organismos devem revolucionar as
explorações biológicas que serão feitas em seguida.
Na Medicina, por exemplo, o conhecimento sobre como os genes contribuem
para a formação de doenças que envolvem um factor genético, como o câncer, por
exemplo, levarão a uma mudança da prática médica. Será dada ênfase à prevenção
da doença, em vez do tratamento do doente.
Novas tecnologias clínicas deverão surgir, baseadas em diagnósticos de DNA;
novas terapias baseadas em novas classes de remédios; novas técnicas
imunoterápicas; prevenções em maior grau de doenças pelo conhecimento das
condições ambientais que podem desencadeá-las; possível substituição de genes
defeituosos através da terapia genética.
O PGH “já completou a descoberta de
mais de 1800 genes de doença, assim como facilita a identificação de outros
genes associados a doenças. As ferramentas desenvolvidas no PGH continuam
servindo para caracterizar genomas de outros organismos importantes”[8].
A conclusão do projecto já está facilitando o desenvolvimento de fármacos muito
mais potentes, a compreensão de diversas doenças
genéticas humanas e facilitando a realização de novos projectos
genoma.
4.2. Desvantagens
O Projecto Genoma Humano não acarreta só
vantagens também tem
desvantagem (éticas e morais), pois o uso indevido dos resultados obtidos deste
projecto pode fazer com que as pessoas percam sua individualidade, tornem-se
vulneráveis e propícias a uma rejeição social que dificultará sua admissão no
emprego.
Do ponto de vista moral e ético, “poder escolher as características dos
embriões não é aceitável, uma vez que não vai permitir que exista uma regularidade
na continuação da espécie humana”[9].
Aos olhos da sociedade, em geral, não é admissível que se possa criar um ser,
que se possa escolher as características, por exemplo: a cor dos olhos ou do
cabelo. É como se a vida humana fosse uma tela, na qual o pintor pode colocar
as cores que quer.
5. A ética que norteia o Projecto
Genoma Humano
Este Projecto
é o maior e mais promissor entre todos os projectos já desenvolvidos no campo
das ciências biológicas. Pretendia, até o ano 2005, identificar e mapear todos
os genes humanos e sequenciar os três biliões de pares de base que constituem
nosso genoma.
Por sua
própria natureza, o PGH cerca-se de algumas incertezas éticas, legais e sociais
(ELSI). Três itens se destacam na agenda ELSI: privacidade da informação
genética, segurança e eficácia da medicina genética e justiça no uso da
informação genética.
5.1. Princípios
éticos básicos do Projecto Genoma Humano[10]
O Projecto Genoma Humano rege-se mediante cinco
princípios fundamentais: a Autonomia, a Privacidade, a Justiça, a Igualdade e a
Qualidade.
ü
O
princípio da Autonomia estabelece que os testes deverão ser estritamente
voluntários, após aconselhamento apropriado, e que a informação resultante
deles é absolutamente pessoal.
ü
O
princípio da Privacidade determina que os resultados dos testes genéticos de um
indivíduo não poderão ser comunicados a nenhuma outra pessoa sem seu
consentimento expresso, excepto talvez a familiares, e mesmo assim após falha
de todos os esforços para obter permissão do paciente.
ü
O
princípio da Justiça garante protecção aos direitos de populações vulneráveis,
tais como crianças, pessoas com retardo mental ou problemas psiquiátricos e
culturais especiais.
ü
O
princípio da Igualdade rege o acesso igual aos testes independentemente da
origem geográfica, racial, étnica e classe socioeconómica.
ü
Finalmente,
o princípio da Qualidade assegura que todos os testes oferecidos terão
especificidade e sensibilidade adequadas e serão realizados em laboratórios
capacitados com adequada monitoragem profissional e ética.
A questão crucial é que não existem maneiras legais de
implementar e garantir que os princípios éticos mencionados acima sejam
aceites, e provavelmente haverá pressões enormes, principalmente de interesses
económicos, para implementação de testes genéticos sem adesão a eles. Outrossim,
toda a problemática sobre a ética converge na intervenção social de três
elementos: a comunidade científica do Projecto Genoma Humano, que vai gerar o
novo conhecimento; o mundo empresarial, que vai transformar esse conhecimento
em produtos e oferecê-los à população; e a sociedade como um todo, que vai
absorver e incorporar o novo conhecimento em sua visão de mundo e suas práticas
sociais, além de consumir os novos produtos.
5.2. Problemas
éticos relacionados com o Projecto Genoma Humano
As vantagens esperadas deste projecto, que foi levado a
termo com colaboração de cerca de 3000 cientistas, foram listadas: a
possibilidade de identificar os genes responsáveis pelas doenças hereditárias e
proceder posteriormente à terapia génica; a realização de um arquivo
internacional de todas as bases azotadas que compõem e representam o genoma
humano; a tipificação de alguns mediante emprego de polimorfismo de ADN, na
maior parte para uso criminológico ou determinação de paternidade, mas também
para conhecer as predisposições para as doenças num particular ambiente
laboral.
Mas a par destas vantagens esperadas evidenciam-se alguns
riscos e problemas de natureza ético, ligados precisamente às possibilidades de
novos conhecimentos do tipo genético[11]:
a)
O
primeiro problema que foi posto em evidência é determinado pela possibilidade
de uma mais ampla aplicação do diagnóstico pré-natal com finalidades eugénicas.
Pode passar a ter mais ampla aplicação, levando a que o diagnóstico pré-natal,
em vez de se destinar a melhor terapia do feto ou um seu melhor acolhimento, ou
pelo menos, a ser ocasião de responsabilidade da mulher e do casal, passa
sofrer uma distorção de objectivos. Além disso, quando o exame pré-natal passar
em evidência uma precisão de doença genética de manifestação tardia, como por
exemplo da doença de Huntington[12],
os problemas éticos aumentam. Porque a não ser na eventualidade de aborto,
neste caso, provavelmente, nem sequer é lícito segundo a lei, pois não se
trataria ainda de «malformação» e «anomalia» presente no feto, mas de qualquer
forma, sempre ilícito do ponto de vista moral; põe-se o problema complexo da
informação. Esta não pode ser dada ao sujeito ainda são, se não quando este
peça e sempre já na maioridade; no caso de sujeito menor, pode ser, em
contrapartida, dada aos progenitores ou representantes legais ou irmãos,
examinando-se caso a caso de cada situação;
b)
Um
outro problema evidenciado consiste na construção de bancos de dados sobre os
sujeitos submetidos à investigação. Esses bancos de dados deveriam estar
disponíveis apenas a privados para fins científicos ou por decisão de um
tribunal.
c)
O
terceiro tipo de risco é de tornar possível, mediante monitorização genética,
uma discriminação no posto de trabalho de todos os sujeitos que possam ser
geneticamente sensíveis a alguns agentes químicos presentes no ambiente de
trabalho.
Outra consequência
advinda da conclusão desse mega projecto é o que A. Jonsem chama de “medicina
genómica”, uma prática sanitária que avançará de maneira bastante significativa
no prognóstico de doenças que o indivíduo pode vir a sofrer no futuro próximo. Ademais,
“a intimidade biológica do indivíduo poderá ser conhecida após a extracção de algumas
gotas de sangue e a utilização dos chamados marcadores genéticos”[13].
Mas deve-se agir com grande rigor: a imensa maioria das doenças hereditárias
não deriva de uma causalidade genética precisa, mas de factores ambientais ou
do tipo de vida da pessoa. Por outro lado, o desenvolvimento e a finalização do
PGH proporcionarão conhecimentos importantes sobre o diagnóstico e o
prognóstico das pessoas, mas terão bem poucas possibilidades terapêuticas sobre
as anomalias genéticas reconhecidas.
Por tudo isso, é
certo que o aprofundamento no conhecimento da base genética das pessoas pode
ter graves consequências para o próprio interessado e especialmente nos âmbitos
empregadores, dos seguros e convénios. A selecção dos candidatos a um cargo
poderá excluir essas pessoas dos postos do mercado do trabalho. Daí que, “como
as análises do genoma do indivíduo afectam sua intimidade biológica mais
profunda, deveriam ser feitas sempre em benefício deles, com sua expressa e bem
informada anuência, a salvo das descriminações”[14]
anteriormente citadas.
5.3. Consequências
gerais do Projecto Genoma Humano
Uma das preocupações, advindas do Projecto,
é que numa sociedade em que as pessoas podem ser estereotipadas pelo genótipo,
o poder institucional se torna mais absoluto. Ao mesmo tempo, a divisão da sociedade
em indivíduos e grupos “superiores” e geneticamente “inferiores”, surgirá uma
nova classe social poderosa. Para evitar uma possível classe de desempregados,
descriminados geneticamente, será preciso fixar limites e impedir que
instituições pratiquem a discriminação.
Um dos temores, é que os empregadores passem a exigir
teste de DNA dos seus operários, levando a uma exclusão social por conta apenas
de uma probabilidade, e não de uma certeza de alguma doença; isso levará a uma
criação de um possível novo grupo de trabalhadores desempregados, neste século
da biotecnologia, baseado apenas nos seus genótipos. Por isso, muitos
profissionais da área de saúde preocupam-se com o facto de que milhões de
pessoas possam vir a ser rotuladas por toda vida com os estigmas de doentes,
pelo simples facto de poder apresentar futuramente uma doença o que levaria à
sua exclusão social e perca de emprego.
Como toda nova descoberta científica, a
desafiadora tarefa de mapear e sequenciar o genoma humano levanta diversas
questões de cunho ético, social e legal. “Se cada gene é património individual,
seria correcto a sua patente por uma empresa privada, por exemplo?”[15] Esta
é uma das principais questões levantadas quando se pensa nos milhares de genes
que estão para ser descobertos e caracterizados e naqueles que já foram patenteados.
Uma das metas principais, senão a principal, do Projecto Genoma Humano, é a
criação de uma medicina genética, que poderá num futuro próximo identificar
falhas ou erros no genoma de um indivíduo e com isso criar uma terapia genética
para corrigi-los. Devemos saber, entretanto, que esta é uma visão muito
determinista e reducionista do que seja um indivíduo e suas características,
mesmo aquelas relacionadas a doenças de fundo genético. Lembremos que o gene
não actua sozinho na determinação das características individuais. A expressão
do gene é modelada pelo ambiente, por factores epigenéticos (do
desenvolvimento), e por factores aleatórios. Neste sentido, se uma doença vai
se expressar ou não, numa dada pessoa, não depende única e exclusivamente de determinado
gene.
6.
A voz do Magistério da Igreja
Como temos vindo a frisar, as novas descobertas e o
progresso tecnológico no campo da biogenética são de tamanha importância e como
tal suscitam também certas dúvidas. A Igreja, “perita em humanidade”[16]
não fica alheia a estes novos inventos científicos, eis porque razão ela sempre
se pronuncia.
A Donum Vitae
considera legítimas as intervenções terapêuticas no embrião humano, “sob a
condição de que respeitem a vida e a integridade do embrião, não comportem por
eles riscos desproporcionados e sejam orientados para a sua cura, para melhoria
de suas condições de saúde ou para sua sobrevivência individual”. Ela admite o
tratamento de diversas doenças do embrião, “como as que devem a defeitos
cromossómicos”, uma vez que “tendem a promover verdadeiramente o bem-estar
pessoal do indivíduo, sem causar dano à sua integridade e sem deteriorar suas
condições de vida”[17].
A Instrução condena
a possível aplicação futura da manipulação genética no ser humano com fins
eugenéticos: “algumas tentativas de intervenção no património cromossómico ou
genético não são terapêuticas, mas visam a produzir seres humanos seleccionados
segundo outras qualidades pre-estabelecidas. Essas manipulações são contrárias
à dignidade pessoal do ser humano, à integridade e à sua identidade. Cada
pessoa deve ser respeitada por si mesma”[18].
Há certas
referências ao valor do progresso científico ou tecnológico, mas a tónica recai
na necessidade de uma criteriologia ética que seja capaz de colocar todo esse progresso
a serviço do homem. Torna-se especialmente necessária e presente uma maior
sensibilidade ética e uma crescente comunhão entre ciência e consciência. Por
isso, João Paulo II afirma que «a ciência é um trabalho humano e deve ser
dirigido unicamente para o bem da humanidade. A tecnologia, como transferência
da ciência à aplicação prática, deve procurar o bem da humanidade e jamais
trabalhar contra esse bem»[19].
É um dado de facto que as ciências biomédicas registam
actualmente um momento rápido e de maravilhoso desenvolvimento, sobretudo com
relação às novas conquistas no campo da genética. Mas não podemos negar de que
a ciência sucumba à tentação do poder demiúrgico. Para João Paulo II, portanto,
a dignidade humana constitui o critério básico de referência para avaliar as
novas tecnologias genéticas. Diz ele, é preciso evitar os reducionismos no
campo dos avanços genéticos: «princípios éticos claramente definidos devem ser
preponderantes na área da biotecnologia … A pessoa humana é muito mais que um
composto de elementos bioquímicos, e não deve ser objecto de experimentos
biológicos ou químicos em vista do puro progresso da biotecnologia. Qualquer
intervenção sobre a estrutura ou o património genético da pessoa que não seja
orientada para a correcção de anomalias constitui uma violação do direito à
integridade».[20] Da
mesma forma, ele sublinha que o compromisso ético em favor da vida em cada
estágio se estende hoje à defesa do património genético do ser humano contra
qualquer alteração ou selecção.
João Paulo II
reconhecia que a necessidade de fomentar estudos do PGH com a condição de que
eles abram perspectivas novas de assistência ou tratamento génico, que
respeitem a vida e a integridade das pessoas e visem salvaguardar ou curar
individualmente os pacientes, nascidos ou por nascer, afectados por patologias mortais.
Mas alertava o perigo de uma selecção de embriões que “elimine aqueles que
estiverem afectados por doenças genéticas ou que sejam portadores de
características genéticas patológicas”[21].
Ele ressaltava o perigo de uma medicina preventiva que transforme o embrião
humano em objeto de experimentação, dado que o património genético é um tesouro
que pertence a um ser singular que tem direito à vida.
De acordo com as
orientações éticas básicas que norteiam o projecto genoma, João Paulo II
reitera a obrigação de um consentimento esclarecido do sujeito adulto sobre o
qual se efectua a pesquisa genética, bem como do respeito ao sigilo sobre os
elementos que poderiam ser conhecidos e que repercutem na pessoa e em sua
descendência. Por outro lado, deve-se evitar também que os dados médicos
relativos às pessoas especialmente os contidos no genoma, sejam exploradas
publicamente em prejuízo delas.
7. Apreciação crítica
Como grupo consideramos que o Projecto Genoma Humano constitui um avanço
positivo no campo da genética, com importantes repercussões na prática médica.
Conhecer a base genética da qual se originam as doenças hereditárias é um
caminho necessário para seu tratamento posterior. Contudo, a busca do “homem
ideal” pode acarretar injustas descriminações, novas formas de racismo, de
dominação do homem pelo homem, bem como a crença unilateral e deturpada de que
os genes é que diferem e determinam a qualidade do ser humano. É imperioso que as
pesquisas terapêuticas cheguem “o mais rádipo possível a resultados concretos”[22].
Julgamos que uma rápida transição da descoberta
do gene à integração na prática clínica pode resultar no desenvolvimento e
oferecimento prematuro de testes genéticos. Estudos epidemiológicos são
necessários para validação de testes genéticos, monitorização de seu uso pela
população e determinação da segurança e efectividade dos testes em diferentes
populações. Reafirmamos a reflexão de Flecter para quem “os problemas éticos com que
deparam os geneticistas são de três categorias: dos que ocorrem na prática da
medicina genética humana; dos que são suscitados pelo desenvolvimento da nova
genética e, dos que são de natureza socio-ética”[23].
Avaliando temerariamente
este projecto podemos frisar que, a dinâmica do progresso e da tecnociência,
atropelou a reflexão ética, as instituições do saber e as instâncias
legisladoras. Há perplexidade em face da constatação de inadequação dos
pressupostos até há pouco aceites, sem que uma solução satisfatória se vislumbre
no horizonte.
Conclusão
O Projecto Genoma Humano como um invento é uma realidade
que surpreendeu os seus protagonistas, na medida em que os resultados colhidos
nele superaram as expectativas, seja a nível dos efeitos para o desenvolvimento
da técnica genética e da própria medicina genómica, seja a nível do tempo
previsto para a conclusão do projecto. Por isso, jamais poder-se-ia negar o
maior progresso científico trazido pela conclusão deste trabalho, embora
continuem aprofundamentos no campo da interpretação dos dados do genoma, no
sentido de prevenir alguns constrangimentos no procedimento de casos concretos.
Pois, o conhecimento detalhado destes dados, e uma compreensão mais profunda
dos processos de doença ao nível da biologia molecular pode determinar novos
procedimentos terapêuticos em favor da saúde humana.
Embora muitos sejam os benefícios colhidos e ainda
esperados, nunca nos podemos eximir de lamentar sobre os problemas éticos
provindos deste grande avanço na investigação da vida e da saúde. Como pudemos
ver ao longo do trabalho, corre-se o risco de criar uma sociedade a bel-prazer
do homem, ou seja, segundo padrões determinados por alguns interessados,
violando, deste modo, o direito, o valor e a dignidade própria da vida humana. É
neste âmbito que o Magistério da Igreja apela para que todo tipo de
investigação não fira o respeito e o valor da dignidade do homem criado à
imagem e semelhança de Deus. É preciso escutar a voz da própria consciência em
qualquer intervenção no património genético, como pertença de toda a
humanidade.
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de Bioética, fundamentos e ética biomédica, Princípia, Portugal 20091.
[1]
Congregação para a Doutrina da Fé, Dignitas
Personae, LEV, Vaticano 2008, 1.
[6] Cf. Lócus citatus.
[7] I Conferência Norte-Sul do
Genoma Humano, realizada em Caxambu (MG) de 12 a 13 de
Maio de 1993.
[8] J. GAFO, Ética y
biotecnologia, Sigueme, Madrid 1993, 110.
[9] Lócus citatus.
[10] Léo
PESSINI, Christian de Paul de BARCHI FONTAINE, Problemas actuais de Bioética, Loyola, São Paulo 20005, 217-218.
[11] Elio SGRECCIA, Manual
de Bioética, fundamentos e ética biomédica, Princípia, Portugal 20091,
412-413.
[12]
É um distúrbio neurológico hereditário raro.
[13] Nodari Stefenon GUERRA, A
biotecnologia, Vozes, Petrópolis 2008, 15.
[17]
Congregação para a Doutrina da fé, Inst. Donum
Vitae, LEV, Vaticano 1988, 3.
[18] Ibidem, 6.
[19] FERNÁNDEZ, 10 palavras-chave
em Bioética, Paulinas, São Paulo 2000, 194.
[20] Ibidem, 195
[21] Locus citatus.
[23] Léo PESSINI, op. cit., 211.